Por Giovanni Hillebrand

 

 

No mês de março de 2018, o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) realizou a Operação Águia I – sua 100º operação ao longo de sua existência. Em seus 35 anos, o CLA não somente tem realizado lançamentos, mas também desempenhado atividades de rastreios, telemedidas, meteorologia, telecomunicações e segurança de superfície e de voo. Encontrando-se atualmente em plenas condições operacionais, o CLA é uma das principais instalações no âmbito do Programa Espacial Brasileiro (PEB), sendo responsável pela execução de testes e experimentos relacionados à Política Nacional de Desenvolvimento de Atividades Espaciais (Pndae).

 

A despeito do alto número de operações realizadas e de veículos (foguetes) lançados – um total de 479 –, até o momento a exploração comercial do Centro (por meio da oferta dos serviços de lançamentos, rastreio, telemedidas e logística) é uma possibilidade aventada, mas não concretizada. Ainda que uma eventual comercialização do CLA abra margem para discussões (relevantes) acerca da soberania brasileira, faz-se importante ressaltar que essa é uma prática comum no mercado espacial global – o próprio Brasil, por exemplo, lançou, em 2017, o Satélite Geoestacionário para Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC) do Centro Espacial de Kourou, na Guiana Francesa; a agência espacial norte-americana (NASA), por sua vez, firmou contratos bilionários, em 2016, com as empresas Orbital Sciences e SpaceX para o lançamento de veículos. Abrir-se ao mercado de lançamentos, portanto, pode ser analisado sob um prisma mercadológico e mesmo estratégico, fazendo-se necessário, contudo, preservar os interesses nacionais em qualquer negociação comercial que venha a ser feita com governos ou empresas estrangeiras.

 

Para que a eventual exploração comercial do CLA ocorra da maneira mais efetiva possível, relevantes mudanças precisam ser implementadas na gestão brasileira do setor espacial. Visando não apenas aumentar a viabilidade dessa comercialização, mas, sobretudo, potencializar o PEB, publicou-se o Decreto nº 9.279, de 6 de fevereiro de 2018, que determinou a criação do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (CDPEB).

 

Coordenado pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o CDPEB conta com uma estrutura interministerial e dispõe de nove Grupos Técnicos voltados para diversas questões, entre as quais se destacam: i) a alteração na governança do Programa Espacial; ii) a criação de uma empresa pública destinada a atividades no setor; iii) o equacionamento da questão fundiária e patrimonial na região de Alcântara; iv) a elaboração de acordos de salvaguardas tecnológicas. Os quatro temas apontados envolvem diretamente a viabilidade da exploração comercial do CLA, podendo até mesmo serem vistos como condicionantes para a eficácia dessa comercialização. Esta análise pretende explorar tais elementos, bem como apresentar perspectivas no tocante a cada matéria.

 

I – Nova governança do setor espacial nacional

 

Estudo realizado pela Câmara dos Deputados a respeito do PEB, em 2010, já identificava deficiências de governança no âmbito do Programa, resultando em um posicionamento estratégico inferior ao ambicionado pelo Brasil. O Tribunal de Contas da União (TCU), por sua vez, apontou problema semelhante em 2017. Nesse sentido, a restruturação da governança espacial tornou-se prioritária, tendo como objetivo primário manter as questões espaciais mais próximas da Presidência da República. Para tanto, pondera-se sobre a criação de um Conselho Nacional do Espaço – a exemplo do ocorrido nos EUA, em 2017 –, de caráter interministerial e com o propósito de prover diretrizes estratégicas para o PEB, bem como de um Comitê Executivo do Espaço, com o objetivo de dotar direcionamento tático ao Programa.

 

Caso as ações apontadas sejam implementadas, argumenta-se que o novo modelo de governança do setor espacial permitirá que as decisões tomadas tenham um caráter mais estratégico, aproximando o PEB do conceito de um programa de Estado. Além disso, a alteração proporcionará uma maior interoperabilidade entre os órgãos envolvidos nas atividades espaciais e um robustecimento do Sistema Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (Sindae) – mantendo a Agência Espacial Brasileira como órgão central, mas reposicionando-a na estrutura do Poder Executivo e fortalecendo sua capacidade política e de coordenação. Discute-se, ainda, sobre a criação de uma empresa nacional para tratar dos temas espaciais (com foco no âmbito comercial), iniciativa que será abordada no próximo tópico.

 

II – Criação de empresa pública para o setor espacial

 

Aponta-se que a fraca inserção no mercado internacional e a relativa fragilidade tecnológica da indústria espacial brasileira tem como uma de suas razões a inexistência de uma empresa nacional, pública ou privada, com capacidade financeira, tecnológica e organizacional de assumir o desenvolvimento de projetos de alta complexidade e de grande porte. Atualmente, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE) atuam como contratantes principais (prime contractors) dos grandes projetos espaciais. Entretanto, tais entidades são Instituições de Ciência e Tecnologia (ICT), não tendo a incumbência comercial característica de empresas e nem a mesma relação com o setor industrial.

 

Uma das soluções para a dificuldade relatada acima encontra-se na criação de uma empresa pública exclusivamente voltada para as atividades espaciais.[1] O modelo é utilizado em diversos países (Índia, Argentina, Israel, Suécia, Coreia do Sul, para citar alguns exemplos) e traria – presume-se – uma maior pujança à cadeia produtiva espacial. Empresas de grande envergadura geram um efeito multiplicador, alavancando todo o setor por meio de contratos com empresas de menor porte. O Ministério da Defesa negocia, pelo menos desde 2016, a criação da Empresa de Projetos Aeroespaciais do Brasil S.A. – ou, simplesmente, Alada – (nome ainda não oficial), que atuaria como um “braço comercial” dos organismos governamentais do setor espacial.

 

III – Entraves fundiários em Alcântara

 

Em 1980, o Governo do Estado do Maranhão promulgou um decreto no qual declarou uma área de 52 mil hectares (ha) para a implantação de um centro espacial em Alcântara – no ano de 1991, em decreto do Governo Federal, essa área foi expandida para 62 mil ha.[2] Ainda que o CLA ocupe, atualmente, apenas 8.713 ha, desde sua implantação existe um planejamento para a construção de novos sítios de lançamentos em uma área de aproximadamente 12 mil ha, possibilitando o aumento de sua capacidade operacional. A maior utilização do território permitiria a consolidação de um Centro Espacial de Alcântara (CEA), composto por diversas instalações e estabelecimentos de serviços.

 

Embora os decretos citados garantam o território necessário para a implantação e a consolidação do CEA, existem entraves de caráter fundiário em tal região. Parte da área prevista no projeto está sob decisão judicial, por ser historicamente ocupada por quilombolas e abrigarem, ainda hoje, essas comunidades. Em 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) publicou um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação de Área (RTID) reconhecendo parcela do terreno em questão como território quilombola, restringindo sua destinação às atividades espaciais.

 

A disputa está sendo mediada pela Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF/AGU), encontrando-se em fase de articulações e negociações, e não deve tardar a ter uma solução. Independentemente do que for decidido, o alcance de um desfecho permitirá um planejamento exequível do PEB, adequado à extensão do território no qual poderá ser desenvolvido.

 

IV – Acordos de Salvaguardas Tecnológicas (AST)

 

Um AST é um acordo recíproco de proteção de tecnologias, pelos quais os signatários estabelecem um compromisso mútuo de resguardar tecnologias e patentes da outra parte contra uso ou cópia não autorizados. Nesse sentido, celebrar ASTs com outros países é uma prática comum no setor espacial – os EUA, por exemplo, possuem acordos desse tipo com Rússia, Índia e Nova Zelândia.

 

Em 2000, o Brasil firmou com os EUA um AST, tendo o acordo sido levado ao Congresso Nacional para a necessária aprovação e ratificação. Entretanto, controvérsias sobre as condições estabelecidas, em especial no que se refere a prerrogativas que os norte-americanos teriam no uso do CLA, fizeram com que o mesmo nunca chegasse à votação em plenário. Como parte dos esforços brasileiros para a restruturação do PEB e para a consolidação do CEA e sua exploração comercial, as negociações com os EUA foram retomadas em 2017 para a elaboração de um novo AST entre os países.

 

Na prática, sua eventual assinatura permitirá que o Brasil lance, de seu território, veículos espaciais que contenham componentes norte-americanos (e vice-versa). Na ausência de um instrumento como esse, os EUA podem embargar qualquer lançamento realizado no Brasil no qual suas tecnologias estejam envolvidas. Não se trata, portanto, apenas de um contrato relativo ao uso do CLA pelos EUA, mas sim de um instrumento imprescindível para a viabilização do uso comercial do Centro e para a inserção do Brasil no mercado de lançamentos.[3]

 

Conclusão

 

Ainda que a potencialização do Programa Espacial Brasileiro perpasse por uma série de outras questões, possíveis avanços nas tratativas e negociações elencadas acima representam um importante passo em tal direção. Considerando que o CDPEB foi criado com um prazo de 360 dias para conclusão de seus trabalhos – cada Grupo Técnico tem um prazo específico –, pode-se esperar que os resultados dessa reformulação sejam vistos ainda no decorrer de 2018. O grande propósito dessa iniciativa, de âmbito federal, consiste no robustecimento do setor espacial do país, algo que, por sua vez, será intensificado a partir da consolidação do Centro Espacial de Alcântara e da ampliação de suas operações.

 

Considerando a relevância estratégica do PEB, bem como as diversas externalidades positivas advindas do desenvolvimento do setor espacial, pode-se evidenciar a importância de que o Brasil alcance maior capacidade em suas atividades espaciais. Ademais, o fato de diferentes serviços dependerem de satélites (comunicação, posicionamento, observação, meteorologia) demonstra que esse setor não se refere apenas a questões de Defesa Nacional, mas também econômicas e sociais. O transbordamento tecnológico relativo ao desenvolvimento de tecnologias espaciais é outro elemento que favorece a priorização da área espacial no âmbito das políticas públicas, bem como a capacitação de profissionais altamente qualificados para a indústria nacional.

 

Por fim, a restruturação e o fortalecimento do Programa Espacial Brasileiro aparenta ser uma atual prioridade estratégica nacional – percepção corroborada pela instituição do CDPEB. Existe uma convergência de esforços entre diversos atores do governo para que o setor espacial alcance uma posição mais privilegiada na estrutura do Poder Executivo, o que facilitará, por exemplo, a coordenação entre os órgãos e a alocação adequada de recursos para cada área. Nesse sentido, a inserção do país no mercado espacial (por exemplo, com a construção de satélites e com o lançamento de foguetes) mostra-se fundamental para uma maior sustentabilidade do setor. Para tanto, a exploração comercial do CLA pode ser compreendida como um elemento fundamental para esse momento de reorganização, já que eventuais acordos comerciais podem vir a estimular o PEB e fomentar toda uma cadeia produtiva nacional. Os quatro elementos apresentados nesta análise, portanto, podem ser vistos como fulcrais para a conquista de um programa espacial mais estruturado, já que estão estreitamente relacionados ao fortalecimento das atividades espaciais, à consolidação do CEA e à inserção comercial brasileira no mercado espacial internacional.

 

 

[1] Outras soluções apontadas são: o fortalecimento de uma empresa privada nacional para atuar como contratante principal; a transferência de projetos das ICTs para a indústria nacional; a formação de joint ventures de empresas nacionais e estrangeiras.

[2] Fontes oficiais indicam que o projeto inicial sempre contemplou 62 mil ha e que o decreto do Governo Federal não se tratou de uma ampliação, mas sim de uma retificação. Entretanto, a questão não está documentada, não sendo, portanto, totalmente clarificada.

[3] Cabe dizer, contudo, que o AST não constitui necessariamente um acordo comercial para a realização de lançamentos, mas o precede e o possibilita.