por Lucas Paradeda Muhle Vila Serra[*]

 

A segurança do Atlântico Sul é tema de enorme relevância na política externa brasileira, tanto pela extensão do litoral quanto pela importância estratégica, sendo a estabilidade no mesmo um objetivo reiterado na atual Política Nacional de Defesa (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2012). Por conseguinte, a situação na costa oeste africana, sobretudo no Golfo da Guiné[1], merece atenção especial, uma vez que a porção atlântica do continente tem sofrido uma escalada dos mais variados crimes marítimos. É evidente a necessidade de um papel proeminente do Brasil na promoção da segurança deste espaço, tendo em vista seus interesses políticos, econômicos e estratégicos, sua importante projeção no mesmo e os laços de cooperação com países da África e com potências extra regionais[2] que se fazem presentes no Atlântico Sul.

 

 

A situação da costa oeste africana

 

 

Entre 2013 e 2017, ocorreram 288 ataques de piratas no Golfo da Guiné, o que equivale a pouco mais de um quarto do total do mundo (ENACT, 2018a). Os grupos responsáveis pelos ataques atuam sequestrando ou atacando embarcações ou estruturas marítimas – como tanques de armazenamento de petróleo e suas embarcações de transporte, por exemplo –, frequentemente com o propósito de negociar resgates. Ademais, o Atlântico Sul é palco de tráfico de armas, pessoas e, sobretudo, drogas[3]. Hoje, a África não é somente parte da rota do comércio de drogas ilegais em direção à Europa, mas, também, um destino de crescente importância. Segundo o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC, 2018), o consumo de opioides, cocaína e heroína têm aumentado no continente. Já no corrente ano, foram feitas as maiores apreensões de cocaína na história de Guiné-Bissau e Cabo Verde[4], ambas advindas do Oceano Atlântico (DEUTSCHE WELLE, 2019a, 2019b). Outros crimes que merecem atenção estão relacionais à biodiversidade marinha, como pesca ilegal, despejo de lixo tóxico e poluição marítima.

 

A grandiosa extensão da costa oeste africana somada à falta de governança conjunta, sólida e eficaz são os maiores desafios com relação aos crimes marítimos. Estes se dão cada vez mais longe do litoral e dos espaços sob jurisdição dos países; ao mesmo tempo, as redes criminosas transnacionais estão cada vez mais profissionais, armadas e adaptáveis, aproveitando-se das atividades de baixo risco e alta lucratividade.

 

Em meio à criminalidade na porção atlântica do continente africano, os países costeiros sofrem com a insegurança no mar. A economia da região depende das rotas marítimas, principalmente no que se refere ao comércio, à pesca e às atividades petrolíferas. Além disso, os danos à biodiversidade marinha não podem ser desconsiderados. As organizações do crime transnacional estabelecem vínculos com grupos extremistas na África setentrional e ocidental, como o Boko Haram e outros afiliados da Al Qaeda e Estado Islâmico, de forma que financiam o terrorismo nas regiões em questão.

 

Neste cenário, a Nigéria, país com maior PIB e população do continente, é um dos principais focos de criminalidade no continente. Além de ser palco de diversos conflitos internos[5], a pirataria marítima se tornou foco de preocupações. Entre 2015 e 2017, 80% dos ataques piratas na África ocidental ocorreram na costa do país notadamente pelo grande fluxo de embarcações de combustível que circulam no delta do rio Níger, sendo alvo para assaltos e sequestros (ENACT, 2018b).

 

 

Esforços africanos para combater crimes marítimos

 

 

Em 2013, representantes de países costeiros e insulares da África e organizações regionais[6] protagonizaram uma grande reunião sobre governança e segurança marítima no Golfo da Guiné, resultando na criação do Código de Conduta de Yaoundé, em busca da prevenção e repressão de crimes marítimos na costa ocidental, e do Centro de Coordenação Inter-regional, como forma de centralizar os aspectos operacional, estratégico e político da governança do Golfo da Guiné.

 

No âmbito da União Africana, além da Estratégia Marítima Integrada da África para 2050, a Carta de Lomé, assinada em 2016, chama atenção para a necessidade de proteção do espaço marítimo africano, tanto no âmbito securitário quanto nas responsabilidades sustentáveis dos países. A Carta, por ser um tratado vinculante, passa a tratar os assuntos marítimos como hard law, em contrapartida a esforços anteriores, com sentido mais soft (EUROPEAN PARLIAMENT, 2019).

 

Com relação ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), dois dos três países africanos com mandato atual, Costa do Marfim e Guiné Equatorial, tomaram a liderança em discussões acerca dos crimes marítimos, indo de encontro à conduta que demonstrava falta de interesse na importância dos mares para a vida humana – também chamada de seablindness (ISS AFRICA, 2019). No entanto, estes dois países serão substituídos ao final deste ano, dando lugar ao Níger e à Tunísia, os quais, provavelmente, não estarão tão engajados quanto seus na pauta em questão, uma vez que não sofrem com tanto com os impactos das atividades criminosas quanto seus predecessores.

 

Ainda, no âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, está sendo discutido formalmente desde 2018 tratado que expandirá a jurisdição marítima para áreas cinzentas no direito internacional, chamadas high seas[7] e The AREA[8]. A falta de jurisdição e regulação, advindas do princípio de liberdade dos mares, tornam estes espaços propícios à ação de crimes marítimos, sobretudo aqueles que se relacionam à biodiversidade marinha. Previsto para ser adotado em 2020, o apelidado “Acordo de Paris para o Oceano” trará maior controle dos países sobre os mares, de forma a combater redes criminosas que se aproveitam da situação legal atual (ENACT, 2019c).

 

As instituições e regramentos concernentes à criminalidade marítima na costa oeste africana sofrem diversas críticas, principalmente pela falta de coordenação entre atores, disputa por recursos e falta de eficiência (Id., 2019b). No entanto, vale constar que, há uma década, não havia uma arquitetura multilateral que tratasse do assunto e que, no decorrer deste período, os esforços de cooperação produziram uma imagem clara de como a estratégia africana deve ser delineada (AFRICA CENTER FOR STRATEGIC STUDIES, 2019).

 

 

Perspectiva brasileira

 

 

A participação do Brasil nos esforços de segurança do Atlântico Sul se torna imprescindível por diversos fatores: o país possui um litoral extenso – cerca de nove mil quilômetros –, está buscando expandir sua plataforma continental (FOLHA DE S. PAULO, 2019), projeta-se como uma potência regional atlântica, cultiva fortes relações diplomáticas e militares com a África e está na rota dos ilícitos transnacionais[9]. O recente discurso no Dia da África, em 27 de maio, do Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo traz à tona a importância das relações entre Brasil e o continente, haja vista que o governo busca para o Brasil “um lugar de destaque no mundo, um lugar que acreditamos ser o nosso destino, e esse trabalho passa muito especialmente pela construção de uma parceria vibrante e sólida com a África” (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2019).

 

Neste ano, pela sexta vez, o Brasil participou do exercício Obangame Express[10], conduzido pelo Comando dos Estados Unidos para a África com o objetivo de capacitar militares africanos para operações marítimas de forma a incrementar os esforços de segurança na costa oeste africana. A participação brasileira em operações militares desta natureza é recorrente, tendo como outros exemplos as operações Felino, com países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – organização da qual seis dos nove membros estão localizados no Atlântico Sul –, os exercícios Atlantic Tidings, com África do Sul, Angola e Namíbia, e Grand African Nemo, conduzido pela França, entre outros.

 

Em relação ao Golfo da Guiné, recentemente, o Brasil instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial de Acompanhamento da Situação no Golfo da Guiné “com o objetivo de acompanhar, planejar e debater questões relacionadas ao Golfo da Guiné, de maneira a prover informações e orientações para que a atuação dos órgãos relacionados com o assunto esteja de acordo com os interesses do Estado brasileiro” (BRASIL, 2019), demonstrando preocupação frente à escalada de crimes na região. Ademais, Brasil mantém um oficial da Marinha no Centro Inter-regional de Coordenação do Golfo da Guiné, em Camarões. Além disso, em visita ao Brasil neste ano, o Ministro da Defesa da Nigéria pediu maior cooperação entre os países para lidar com a pirataria na região (PRNIGERIA, 2019).

 

O Brasil, portanto, tem papel importante na segurança do Atlântico Sul, e os esforços para fortalecer laços cooperativos para tal são pautas visíveis na política externa. No entanto, as formas, a dimensão e o alcance da cooperação estão aquém do necessário para a projeção do país como ator fundamental na perspectiva securitária do Atlântico Sul, muito relacionado ao momento de precariedade e escassez de recursos que a Marinha brasileira passa atualmente (EXAME, 2019).

 

Tendo como objetivo a segurança da região, o reavivamento da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS)[11] foi citado pelo Embaixador Alessandro Candeas e pelo Contra-Almirante Antônio Ruy de Almeida em evento promovido pelo Ministério da Defesa, em junho deste ano. Este debate vem à tona buscando evitar a militarização do Atlântico Sul em meio ao retorno da geopolítica como fator mais relevante nas disputas das grandes potências internacionais. Apesar disso, a recente aproximação do Brasil com os Estados Unidos – inclusive com a declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre a aquisição do status de aliado extra-Otan (VALOR, 2019) – vai de encontro a esta concepção, e o caminho mais claro para a participação brasileira na segurança do Atlântico Sul segue a premissa de incrementar a cooperação através de exercícios militares, principalmente envolvendo potências extra regionais.

 

 

Referências

 

 

AFRICA CENTER FOR STRATEGIC STUDIES. Trends in African Maritime Security. 15 mar. 2019. Disponível em: <https://africacenter.org/spotlight/trends-in-african-maritime-security/>. Acesso em 01 jul. 2019.

BRASIL. DECRETO N. 9.800, DE 23 DE MAIO DE 2019. Institui o Grupo de Trabalho Interministerial de Acompanhamento da Situação no Golfo da Guiné. Brasília, DF, mai. 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9800.htm>. Acesso em 01 jul. 2019.

DEUTSCHE WELLE. Cape Verde seizes 9.5 tons of cocaine, Russian sailors arrested.

______. Guiné-Bissau: Maior apreensão de droga da história do país em véspera de eleições. 10 mar. 2019b. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/guin%C3%A9-bissau-maior-apreens%C3%A3o-de-droga-da-hist%C3%B3ria-do-pa%C3%ADs-em-v%C3%A9spera-de-elei%C3%A7%C3%B5es/a-47840628>. Acesso em 25 jun. 2019.

ENACT. Is Cape Verde doomed to become a narco-state? 04 jun. 2019a. Disponível em: <https://enactafrica.org/enact-observer/is-cape-verde-doomed-to-become-a-narco-state>. Acesso em 25 jun. 2019.

______. Overview of Serious and Organized Crime in Africa: Analytical Report. 2018a. Disponível em: <https://enactafrica.org/research/analytical-reports/interpol-overview-of-serious-and-organised-crime-in-africa-2018>. Acesso em 27 jun. 2019.

______. Overview of Serious and Organized Crime in West Africa: Analytical Report. 2018b. Disponível em: < https://enactafrica.org/research/analytical-reports/interpol-overview-of-serious-and-organised-crime-in-west-africa-2018>. Acesso em 28 jun. 2019.

______. The challenge of governance in the Gulf of Guinea. 2019b.

______. Will a new treaty boost Africa’s fight against maritime crime? 14 fev. 2019c. Disponível em: <https://enactafrica.org/enact-observer/will-a-new-treaty-boost-africas-fight-against-maritime-crime>. Acesso em 01 jul. 2019.

EUROPEAN PARLIAMENT. Piracy and armed robbery off the coast of Africa: EU and global impact. 2019. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/thinktank/en/document.html?reference=EPRS_IDA(2019)635590>. Acesso em 01 jul. 2019.

EXAME. Corte de 44% na verba das Forças Armadas afeta mais a Marinha. 13 mai. 2019. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/cortes-no-ministerio-da-defesa-afetam-mais-a-marinha/>. Acesso em 05 jul. 2019.

FOLHA DE S. PAULO. Brasil volta a mirar o Atlântico Sul, mas enfrenta limitações militares. 24 jun. 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/06/brasil-volta-a-mirar-o-atlantico-sul-mas-enfrenta-limitacoes-militares.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa>. Acesso em 01 jul. 2019.

ISS AFRICA. Promising signs of Africa’s global leadership on maritime security. 2019. Disponível em: < https://issafrica.org/amp/iss-today/promising-signs-of-africas-global-leadership-on-maritime-security>. Acesso em 01 jul. 2019.

MINISTÉRIO DA DEFESA. Política Nacional de Defesa. 2012. Disponível em: <https://www.defesa.gov.br/estado-e-defesa/politica-nacional-de-defesa>.

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Discurso do ministro Ernesto Araújo na conferência “A cooperação entre o Brasil e a África”, por ocasião da celebração do Dia da África. 27 mai. 2019. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas-categoria/ministro-das-relacoes-exteriores-discursos/20456-discurso-do-ministro-ernesto-araujo-na-conferencia-a-cooperacao-entre-o-brasil-e-a-africa-por-ocasiao-da-celebracao-do-dia-da-africa-brasilia-27-de-maio-de-2019>. Acesso em 01 jul. 2019.

PRNIGERIA. Nigeria, Brazil to Tackle Insecurity in the Gulf of Guinea. Abr. 2019. Disponível em: <https://prnigeria.com/2019/04/04/nigeria-brazil-gulf-guinea/>. Acesso em 01 jul. 2019.

UNODC. World Drug Report. 2018. Disponível em: <https://www.unodc.org/wdr2018/>.

U.S. NAVY. Exercise Obangame Express 2019. 2019. (1m05s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GgBqKpp6nfQ>. Acesso em 05 jul. 2019.

VALOR. Bolsonaro anuncia que Brasil foi aceito como aliado extra-Otan. 16 jun. 2019. Disponível em: <https://www.valor.com.br/politica/6308439/bolsonaro-anuncia-que-brasil-foi-aceito-como-aliado-extra-otan>. Acesso em 01 jul. 2019.

 

 

[*] Graduando em Relações Internacionais na Universidade de Brasília.

[1] A dimensão geográfica do Golfo da Guiné é varia a depender do autor. Nesta análise, será compreendida a região que se estende de Guiné-Bissau à Angola, incluindo as ilhas ali localizadas.

[2] Alguns países mantêm bases militares no Atlântico Sul, sobretudo Estados Unidos, Reino Unido e França.

[3] Para um panorama atual sobre o tráfico de drogas e a relação com o Brasil, ver a análise de conjuntura de Matheus Mariano Teles, disponível neste site.

[4] A relação estrutural de Cabo Verde com o tráfico de drogas traz à tona a possibilidade do país ser classificado como um narcoestado (ENACT, 2019a).

[5] Conflitos entre fazendeiros e pastores, movimento separatista na região de Biafra, escalada da violência na região de Zamfara e presença do grupo jihadista Boko Haram são os exemplos mais notórios.

[6] Organizaçõs como a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS), Comunidade Econômica da África Central (ECCAS) e a Comissão do Golfo da Guiné (CGG) têm papel importante no combate aos crimes marítimos.

[7] Todas as partes do mar que não estão incluídas em zona econômica exclusiva, mar territorial ou águas internacionais de um Estado, ou em águas de arquipélago ou Estado arquipélago (ENACT, 2019c).

[8] Solo oceânico e subsolo, áreas além da jurisdição internacional (Ibid.)

[9] O Porto de Santos tem papel central na rota do tráfico de drogas para África e Europa.

[10] Este ano, o exercício completou sua nona edição, com participação de 33 países. Os objetivos desta edição se referiam à segurança energética e aos esforços contra pirataria, pesca ilegal e tráfico (U.S. NAVY, 2019).

[11] A Zopacas foi criada em 1986 no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas como um esforço multilateral dos países da região. Não tem atividades institucionais desde 2013.