Inserção da África no mercado de drogas como consumidor e as implicações para o Brasil

 

por Matheus Teles

 

No dia 19 de dezembro de 2018, em discurso proferido no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas,Yuri Fedovot, Diretor Executivo do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime ( UNODC) (Yury Fedotov chamou atenção, de modo assertivo, para o aumento do consumo de drogas nos países das Áfricas Central e Ocidental. Segundo o Diretor, há, naquelas regiões, grande potencial de instabilidade com graves reflexos para todo o continente. O discurso se reportou ao Relatório Anual de Drogas de 2018 divulgado pela própria UNODC em junho passado. Foram destacados dados que sintetizam a grave situação da região no tocante ao tráfico internacional de drogas.  Dentre eles,  o fato de que  87% da apreensão mundial de fármacos opioides para consumo não medicamentoso ocorreu  na região central, no oeste e no norte do continente[1]; na África, a apreensão de metanfetaminas subiu a ponto de quase atingir os mesmos níveis das de cocaína;  o continente também bateu o número de 38 milhões de usuários de maconha e 1,8 milhões de usuários de cocaína (UNODC, 2019).

A esse panorama apresentado ao Conselho de Segurança se somam outros desafios - segurança, crescimento econômico, persistência de problemas sociais graves internos e saúde pública. Essa nova faceta de grande mercado consumidor se relaciona diretamente com preocupações de segurança do Brasil na medida em que afeta a dinâmica do tráfico internacional de drogas, particularmente no espaço setentrional da América do Sul e no Atlântico Sul. Em 2013, outro documento da UNODC (The Flows: Cocaine from the Andes via West Africa to Europe) sublinhava a condição da África Ocidental como  espaço de trânsito da droga para os grandes centros  consumidores na Europa. Segundo aquele documento, as turbulências políticas e socais eram fatores que contribuíam decisivamente para a alta preferência por tal rota por parte dos traficantes de cocaína sul-americanos. Entretanto, e desde então, observa-se que o fluxo de drogas direcionado à África Ocidental se volta cada vez mais para o consumo interno nos diferentes países da região. Segundo o Relatório de 2018 da UNODC (UNODC, 2018), atualmente, apenas 6% da cocaína embargada na Europa provêm de rotas africanas, de modo que grande parte se desloca para as regiões ocidental e central do continente.  

O Brasil, por seu turno, consolidado como o segundo maior mercado consumidor e importante rota de trânsito, é o país mais mencionado como origem da cocaína apreendida na África entre 2012 e2017 (UNODC, 2018).  É, portanto, notória a crescente importância do Brasil no fluxo de drogas ilícitas com destino à África. É nesse contexto que devem ser analisados o potencial e a condição de participação do Brasil no fluxo desse narcótico, visto que as apreensões efetuadas no ano de 2019 corroboram o aludido aumento do consumo africano, tal destacado pelo Relatório.

O Porto de Santos, ponto de saída de grande parte da droga que cruza o Brasil, por exemplo, foi palco da apreensão de mais de 8 toneladas de cocaína até o dia 17 de abril desse ano (G1, 2019a) e, depois dessa data, em 12 de junho, a soma das apreensões alcançou mais de 11,5 toneladas. (G1, 2019b). Em Guiné Bissau[2] e Cabo Verde, as interceptações são recordes: 800 quilogramas em 01 de fevereiro (Deutsche Welle, 2019) e 9,5 toneladas em 09 de março (Rádio França Internacional, 2019). Somados os valores dessas duas apreensões, o total representa quantidade maior que as apreensões realizadas em toda a região entre os anos de 2013 e 2016 (EL PAÍS, 2019).

Além do narcotráfico internacional que passa no porto de Santos, inúmeras quadrilhas atuam no contrabando e podem servir como apoio ao escoamento de drogas rumo aos crescentes mercados de consumo na África[3]. Recentemente a Polícia Federal investigou, no marco da Operação Flak, uma quadrilha suspeita de transporte de cocaína para os Estados Unidos, Europa e África e que acumulava um patrimônio de 26 aviões, além de fazendas e gado. Igualmente, as facções criminosas no Brasil que detêm uma gama de influência, conhecimentos e redes de contatos internacionais devem se projetar nesse lucrativo mercado. O Primeiro Comando da Capitial (PCC) é exemplo.  Este grupo e a máfia italiana 'Ndrangheta[4] eram responsáveis por parcela significativa da cocaína que deixava o Brasil em direção à Europa e África. (OUL, 2018) O Primeiro Comando da Capital, o Comando Vermelho e a Família do Norte, grupos que possuem contatos com organizações do tráfico em regiões colombianas, peruanas e bolivianas, e disputam entre si o domínio do tráfico que se utiliza da Amazônia em rotas lucrativas e estratégicas.

Portanto, o aumento do consumo de drogas na África como um todo e na África Ocidental, de modo particular, traz impactos diretos para o Brasil no que tange ao narcotráfico enquanto e representa importante desafio à estabilidade e à segurança no Entorno Estratégico Brasileiro em suas projeções continentais e marítima.  

 

REFERÊNCIAS

UNODC. Remarks at the UN Security Council briefing on drug trafficking in West Africa as a threat to stability. 19 dez. 2019. Disponível em: https://www.unodc.org/unodc/en/speeches/2018/unsc-wca-191218.html. Acesso em: 15 de junh. 2019.

UNODC. The Flows: Cocaine from the Andes via West Africa to Europe. 31 dez. 2014. Disponível em: file:///C:/Users/mathe/Documents/1%C2%B0%20Per%C3%ADodo/GEPSI/%C3%81frica/Tr%C3%A1fico%20de%20Drogas/UNODC13%20Routes%20of%20droug%20also%20linked%20with%20Brazil.pdf. Acesso em: 22 mai. 2019.

UNODC. ANALYSIS OF DRUG MARKETS Opiates, cocaine, cannabis, synthetic drugs. 2018. Disponível em: file:///C:/Users/mathe/Documents/1%C2%B0%20Per%C3%ADodo/GEPSI/%C3%81frica/Tr%C3%A1fico%20de%20Drogas/UNDC%20Relat%C3%B3rio%20Anual%20de%20Drogas%20produ%C3%A7%C3%A3o,%20consumo%20e%20distribui%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acessado em: 21 mai. 2019.

G1. Apreensão de drogas bate recorde no Porto de Santos, SP. 17 abr. 2019. 2019a. Disponível em: http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/jornal-tribuna-2edicao/videos/t/edicoes/v/apreensao-de-drogas-bate-recorde-no-porto-de-santos-sp/7548899/. Acesso em: 22 mai. 2019.

G1. Mais de meia tonelada de cocaína é encontrada em carga de revestimento em SP. 12 junh. 2019. 2019b. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/porto-mar/noticia/2019/06/12/mais-de-meia-tonelada-de-cocaina-e-encontrada-em-carga-de-revestimento-em-sp.ghtml. Acesso: 17 junh. 2019.

DEUTSCHE WELLE. Guiné-Bissau: Maior apreensão de droga da história do país em véspera de eleições. 10 març. 2019. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/guin%C3%A9-bissau-maior-apreens%C3%A3o-de-droga-da-hist%C3%B3ria-do-pa%C3%ADs-em-v%C3%A9spera-de-elei%C3%A7%C3%B5es/a-47840628. Acesso: 22 mai. 2019.

RÁDIO FRANÇA INTERNACIONAL. Maior apreensão de droga de sempre em Cabo Verde. 01 fev. 2019. Disponível em: http://pt.rfi.fr/cabo-verde/20190201-maior-apreensao-de-droga-de-sempre-em-cabo-verde. Acesso em: 22 març. 2019

EL PAÍS. Droga y terrorismo van de la mano en el Sahel. 27 març. 2019. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2019/03/18/africa_no_es_un_pais/1552933180_326955.html. Acesso em: 06 abr. 2019.

CRISIS GROUP. Drug Trafficking, Violence and Politics in Northern Mali. 13 dec. 2018. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/africa/sahel/mali/267-narcotrafic-violence-et-politique-au-nord-du-mali. Acesso em: 22 mai. 2019.

VOA NEWS. G5 Sahel Force Struggles with Funding, Coordination. 27 dec. 2018. Disponível em: https://www.voanews.com/extremism-watch/g5-sahel-force-struggles-funding-coordination. Acesso em: 22 mai. 2019.

ÉPOCA. 'Ndrangheta: uma máfia multinacional. 26 mai. 2017. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2017/05/ndrangheta-uma-mafia-multinacional.html. Acesso em: 16 junh. 2019.

UOL. Traficante italiano usa loja de toalhas como fachada em SP. 20 dec. 2018. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/os-negocios-do-pcc-com-a-mafia-italiana#operacao-na-europa-prende-90-ligados-a-mafia-italiana. Acesso em: 22 mai. 2019.

 

[1] O Relatório citado destaca que pode haver erros marginais devido à falta de dados disponíveis para vários países.

[2] Essa operação em específico estava relacionado às células da al-Qaeda do Magrebe Islâmico. De modo geral, a relação de grupos islâmicos jihadistas com o tráfico não é tão linear quanto se pensa. Houve uma aproximação desses grupos, em especial no Mali (CRISIS GROUP, 2018), pela abordagem errônea da cooperação proposta que se deu com o foco no combate ao terrorismo fundamentalmente, negligenciando outras demandas. Essa aproximação aconteceu a despeito de a proposta de integração visasse a cooperação no combate composto por pilares do combate ao terrorismo, ao narcotráfico, facilitação de   restauração da autoridade estatal, pois o que se viu na realidade foi o foco simplesmente nas ações antiterrorismo simplesmente (VOA NEWS, 2018);

[3] A quantidade de cocaína apreendida na África dobrou de 2015 a 2016 (UNODC, 2018).

[4] Esta máfia em específico mantém representantes fixos na Guiné Bissau (ÉPOCA, 2017)