Por Alcides Costa Vaz, Tiago Soares Nogara e Vitor Placido

  

 

Em 26 de março, a justiça dos Estados Unidos da América (EUA) indiciou uma série de lideranças de Estado venezuelanos, acusadas de complacência e engajamento direto em atividades ligadas ao narcotráfico. Nicolás Maduro, Presidente venezuelano, foi formalmente acusado de liderar e operar estrutura criminosa que teria traficado cerca de 250 toneladas de cocaína para o território dos Estados Unidos, metade das quais, por vias marítimas, no caso, caribenhas. Além do Presidente, por cuja captura oferecida recompensa de 15 milhões de dólares pela captura, também foram indiciados Diosdado Cabello, número dois do governo chavista, Vladimir Padrino López, Ministro da Defesa, e Maikel Moreno, Presidente da Suprema Corte. A acusação se baseou em supostas evidências de ligações governamentais com o narcotráfico.

 

No dia 31 de março, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, apresentou proposta de transição democrática para a Venezuela. Nessa, impunha condicionalidades para a suspensão das sanções estadunidenses ao país. Dentre elas, constavam: a dissolução da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) e restauração da Assembleia Nacional (AN); a libertação de criminosos designados como presos políticos; a retirada de forças de segurança estrangeiras do país, a menos que a AN autorizasse, por ¾ dos votos, suas respectivas permanência; eleição de um Conselho Nacional Eleitoral (CNE) multipartidário e de novos membros para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ); criação de um Conselho de Estado, a desempenhar as funções do Poder Executivo, composto por uma coalizão envolvendo as várias representações políticas do país; a convocação de eleições presidenciais e legislativas pelo Conselho de Estado. Uma vez formado o Conselho, os Estados Unidos levantariam as sanções. A proposta foi apoiada pelo principal líder da oposição, Juan Guaidó, mas foi prontamente rechaçada pelo governo de Nicolás Maduro.

 

Em 02 abril, já no contexto de ascensão da crise do Covid 19 nos EUA, o Presidente Donald Trump anunciou a realização de operações antidrogas por parte do Comando Sul, duplicando as capacidades militares do país no Mar do Caribe e na costa oriental do Pacífico norte, e formatando a maior movimentação militar estadunidense na América Latina nos últimos 30 anos. Consequentemente, o fantasma da possibilidade de uma intervenção militar estadunidense na Venezuela, visando à mudança de regime, ressurgiu nos meios políticos regionais, em momento de grande fragilidade econômica do governo chavista, potencializada pela baixa nos preços do petróleo e pelos efeitos da paralisação de atividades produtivas e comerciais para conter o avanço do Covid 19. A sequência de acontecimentos - indiciamento de Nicolás Maduro e de parte das lideranças de Estado venezuelanas, proposta de transição política, mobilização militar no Mar do Caribe – denota clara ofensiva visando  a por fim ao governo do Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), objetivo assumido e insistemente  perseguido pelos Estados Unidos, muito embora também aponte a outras preocupações e interesses de segurança no âmbito regional,  como visto a seguir.

 

 

A mobilização militar estadunidense para além da questão venezuelana

 

Dentre os fatos considerados, inequivocamente o de maior impacto sobre o cenário estratégico regional é a constituição de uma poderosa força-tarefa militar para atuar no flanco oriental do Pacífico Norte e no Mar do Caribe com o alegado fim de combater o tráfico de drogas ilícitas provenientes da América do Sul e que se processa por via marítima rumo aos mercados de consumo do México e dos Estados Unidos. Nesse plano, há dados empíricos robustos providos pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes  (UNODC) que dão conta do incremento da produção e dos fluxos de drogas ilícitas , com ênfase na cocaína, oriundas da América do Sul em direção à América do Norte, movendo-se tanto pelo flanco do Pacífico como pelas águas do Caribe.

 

No mesmo sentido, a UNODC também aponta tendência ao incremento da pirataria e de crimes marítimos no Caribe, fator que embasa as solicitações de aumento da capacidade de detecção e interdição do tráfico de drogas e de outros ilícitos naquele espaço, tal como as preconizadas por especialistas e organizações não governamentais atuantes no tema junto ao Conselho de Segurança das Nações Unidas,  em junho do ano passado, e pelo próprio governo norte-americano. Em junho de 2019, o Conselho de Segurança recolheu um rol de  recomendações emanadas de inédito encontro com especialistas e representantes da sociedade civil, dentre as quais merecem destaque o fortalecimento de capacidades para prevenir, detectar e interceptar fluxos ilícitos e a busca de opções para melhorar a coordenação no enfrentamento aos crimes marítimos.  Cumpre destacar que o Secretário de Defesa Mark Esper frisou, quando do anúncio da constituição da força tarefa, que a iniciativa contava com o apoio de vinte e dois países e que as forças irão operar simultaneamente no Caribe e no Pacífico oriental.

 

Cabe destacar que apesar da importância nas rotas que ligam o narcotráfico entre a América do Sul e a América do Norte, a Venezuela passa longe de constituir epicentro de produção e distribuição de narcóticos na região. É sua vizinha, a Colômbia, de governo politicamente alinhado aos EUA e detentora de inúmeras bases militares estadunidenses que concentra, em larga medida, a produção, constituindo também o principal foco de potencialização das rotas em direção ao mercado estadunidense. Assim, chama atenção que tamanha mobilização militar seja anunciada num contexto de recente indiciamento do Presidente venezuelano, Nicolás Maduro, por narcotráfico, a partir de instância jurídicas dos EUA, e de posterior proposição, pelo Departamento de Estado, de um plano de transição política para a Venezuela, apoiado pelo principal contendor do governo chavista, Juan Gauidó.

 

Ainda assim, como já demonstrado, a mobilização militar estadunidense interage com outras questões de fundo, para além do recrudescimento de iniciativas em prol da queda do governo de Nicolás Maduro. Os elementos contextuais apontam, portanto,  para a confluência de fatores associados (i) ao aumento da pressão política, econômica e também militar sobre o regime de  Nicolas Maduro na Venezuela; (ii) ao fortalecimento da repressão ao narcotráfico nas rotas do Mar do Caribe e Pacífico norte oriental; (iii)  às contingências da crise do Covid 19. O último ponto, especificamente, interage com distintas facetas da corrente situação política, envolvendo a criação de um ambiente desfavorável à eventual reeleição do Presidente Donald Trump - no contexto de propagação massiva da pandemia em território estadunidense - passando pela anunciada visão do governo norte-americano de que o contexto da pandemia favorece a ação de grupos do crime organizado e a proliferação de justificativas de recorte humanitário para legitimar o aumento das pressões sobre o governo venezuelano. Desse modo, e para melhor dimensionar o alcance e impactos potenciais da crise do Covid 19 na Venezuela, apresentam-se, nos parágrafos seguintes, dados sobre a infraestrutura de saúde e a disseminação do Covid 19 naquele país.

 

 

A Venezuela face à pandemia Covid 19

 

Em novembro de 2019, reiterando preocupações acerca da grave realidade sócio-econômica da Venezuela, Mark Lawcock, Subsecretário-Geral das Nações Unidas para Assunto Humanitários, após visita àquele país, declarou que o sistema de saúde estava prestes a colapsar, tendo em vista a incapacidade de responder às exigências mais simples de salubridade. A situação ganhou contornos ainda mais sombrios com a irrupção da pandemia causada pelo Covid 19.  Quase a totalidade dos serviços públicos do país se encontra em uma situação extremamente precarizada, e com os serviços de saúde não é diferente. O acesso contínuo a água nos hospitais é de 44%, faltando inclusive sabão em parte significativa das unidades médicas; 44% não possuem eletricidade contínua; 64% não possuem máquinas de raio-x; e a carência de protocolos para tratamentos respiratórios aflige 90% dos hospitais. Todas essas preocupações foram elencadas pela diplomacia norte-americana em uma conferência organizada pelo Conselho das Américas na última semana do mês de março.

 

O contexto de recessão que se prolonga por seis anos contínuos no país, que também experimentou uma das maiores depreciações cambiais da história recente, se vê fortemente agravado no contexto da pandemia. Estima-se que um terço da população venezuelana não possua acesso à comida diariamente, o que dificulta ainda mais a aderência da população à quarentena decretada pelo governo venezuelano no dia 16 de março. Para mitigar a grave condição da saúde pública, uma missão médica chinesa foi enviada em 30 de março levando consigo 22 toneladas de insumos médicos, incluindo testes rápidos, tomógrafos, e ventiladores mecánicos. Outras 55 toneladas de material e equipamentos de saúde haviam sido enviadas naquela mesma semana pelo Governo chinês. Nesse período o governo venezuelano já contabilizava 3 óbitos e 165 casos confirmados no país. Os números apresentados pelo Governo venezuelano vem sendo contestados desde então.

 

Em  08 de abril, diante de um quadro de 8 óbitos e 166 casos confirmados, Nicolás Maduro ordenou a hospitalização total das pessoas infectadas. Aproveitou o ensejo para garantir que 23.500 leitos estavam disponíveis para população, distribuídos em 46 unidades médicas no país. De acordo com alguns especialistas, que contestam os números oficiais, o número de leitos disponíveis no país não chega a passar de 200 unidades.

 

Ao se considerar os grupos de risco, a situação se mostra ainda mais alarmante: aproximadamente três milhões de aposentados no país sobrevivem com até três dólares mensais. A desnutrição não é incomum entre os grupos mais vulneráveis que, além disso, carecem de renda suficiente para aquisição de medicação básica, e de cuidados por parte de membros mais novos da família dado o intenso fluxo migratório por parte de grupos inseridos em faixas etárias específicas do país, desde 2015. Em bairros como Petare, o maior do país, serviços de água e lixo são extremamente precários, e os níveis de pobreza praticamente impedem o cumprimento das medidas de isolamento social.

 

Em municipalidades mais pobres algumas medidas alternativas estão surgindo para tentar lidar com a precária infraestrutura. Em Chacao, município do estado de Miranda, onde 8 casos já foram confirmados, o prefeito Gustavo Duque informou que poços artesianos seriam construídos para atender a demanda por abastecimento de água em várias zonas do município. De acordo com os dados oficiais do governo eram 181 o número de casos confirmados no país no último dia 12 de abril; destes, 93 já estariam recuperados, 27 estariam em leitos em hospitais públicos, 24 reclusos em unidades de tratamento intensivo, 13 em clínicas privadas, 9 em isolamento domiciliar e 6 em hotéis.

 

Nesse ínterim, persistem e tendem a se agravar as pressões decorrentes do fluxo migratório nos espaços fronteiriços com a Colômbia e o Brasil, de modo mais intenso. Vale lembrar, a esse respeito, que Roraima, porta de entrada dos imigrantes venezuelanos no Brasil, sofre com a insuficiência de leitos. Hospitais de campanha tem sido montados como parte do direcionamento logístico dado pela Operação Acolhida, e quando notificados os primeiros dois casos no estado na penúltima semana de março, a Secretaria de Saúde do Estado de Roraima anunciou a aquisição de 40 novos leitos de UTI. De qualquer modo, o estado ainda não atende os critérios da OMS em número de leitos por número de habitantes.

 

Portanto, a pandemia global, em um contexto de crise sócio-político-econômica, como ocorre no caso venezuelano, alimenta temores quanto ao agravamento dos muitos problemas estruturais que acometem a Venezuela anteriormente à mesma, com reflexos diretos nos países vizinhos, como acima apontado. Ao mesmo tempo, potencializa condições favoráveis ao aumento da criminalidade e da violência, fenômeno também já em curso há quase duas décadas. É nesse contexto que as vicissitudes impostas pela pandemia na Venezuela são percebidas como funcionalmente vinculadas, na ótica do governo dos EUA, ao incremento observado no tráfico e no consumo de drogas ilegais e ao fortalecimento do crime organizado, com, não somente o beneplácito, mas também com o envolvimento direto do governo venezuelano, o que justificaria, segundo essa mesma visão, a necessidade de constituir poderosa força-tarefa militar para deter tanto o fluxo de drogas destinadas à América do Norte. Para além desse objetivo, observadores também apontam a interdição do contrabando de mercadorias que teria se intensificado após a imposição de sanções econômicas pelo governo norte-americano como objetivo da referida força tarefa.

 

 

Considerações finais: impactos regionais e implicações para o Brasil:

 

No plano regional as implicações desse conjunto de fatores se desdobram, inicialmente, em duas frentes: primeiramente, e de modo mais imediato, aquela relacionada aos evidentes esforços norte-americanos de promover mudança de regime na Venezuela, com a recente decisão compondo um repertório de medidas de natureza coercitiva que almejam aumentar o impacto das sanções econômicas e do isolamento político a que o governo venezuelano se acha submetido.  Em tal caso, dada a forte convergência política entre países como Colômbia, Equador, Peru, Chile e próprio Brasil com o atual governo dos Estados Unidos no tocante ao regime venezuelano, não há que se esperar algum tipo de resistência e menos ainda, de oposição à iniciativa dos Estados Unidos. Esta tende a ser assimilada no horizonte de curto prazo.

 

Contudo, em perspectiva temporal mais ampla que contemple possível mudança no cenário político nos Estados Unidos e também no plano regional e que venham a afetar o grau de convergência hoje observado em torno do isolamento e deposição do regime de Nicolás Maduro, a decisão poderá se converter em objeto de contencioso político, porém não suficiente para levar à sua reversão. Nesse plano, e como possibilidade mais extrema, há que se observar a disposição de parte dos Estados Unidos de, eventualmente, empregarem meios militares em um contexto de escalada de tensões com o atual governo venezuelano, o que forçaria uma tomada de posições de parte do governo brasileiro, neste momento propenso a apoiar ações que visem a mudança de regime na Venezuela, mesmo que contrariando posições tradicionalmente sustentadas pela diplomacia do país em favor do respeito à soberania e da não interferência em assuntos internos.

 

Porém, no presente, a intervenção militar na Venezuela não comparece como hipótese plausível no curto prazo, embora não seja descartada pelo governo dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, não se deve desconsiderar a possibilidade de que a força tarefa seja empregada para  impor um eventual bloqueio naval, mesmo que parcial, à Venezuela. Nesse sentido, as iniciativas norte-americanas ora em apreço tanto encerram desafios políticos importantes para o Brasil quanto expõem contradições evidentes entre os princípios retores da política externa brasileira e os enunciados da Política Nacional de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa, de um lado, e a orientação e posições assumidas pelo  governo brasileiro sob Jair Bolsonaro.

 

Desse modo, e no que tange à mobilização militar voltada alegadamente ao combate ao narcotráfico, as iniciativas recentes dos Estados Unidos aprofundam, circunstancialmente, o dilema brasileiro entre, de um lado, a salvaguarda dos interesses de segurança e de defesa do país por meio da resistência à militarização do tratamento de ameaças não convencionais como o narcotráfico, em consonância com a posição que o País sustenta historicamente e, de outro, a adesão à estratégia e às iniciativas norte-americanas que preconizam o emprego de meios e coercitivos, inclusive militares, como componente necessário para o efetivo enfrentamento àquelas ameaças. Em tal contexto, as vicissitudes políticas que enfrentam internamente os governos norte-americano e brasileiro podem aumentar o risco de que decisões futuras quanto à Venezuela acentuem a já presente inclinação por ações coercitivas em detrimento da construção de soluções negociadas e com forte potencial de escalada de violência.