André Jorge Dias de Moura Junior[1]

 

 

A Boeing Brasil não decolou. Felizmente para uns, infelizmente para outros, fato é que no último dia 25/04/2020 a Boeing informou que rescindiria o Master Transaction Agreement (MTA), celebrado entre a estadunidense e a brasileira Embraer no dia 24 de janeiro de 2019. Neste acordo, a Boeing e a Embraer firmavam as condições para a venda – que as partes chamavam de “Joint-Venture” – de 80% da área de aviação comercial da empresa brasileira para os estadunidenses. O nome da nova empresa seria Boeing Brasil-Commercial.

 

A lua de mel entre as duas empresas, que chegou a ter site próprio com nome sugestivo – voandojuntas.com.br, já fora do ar -, findou-se após a Boeing ter acusado a Embraer de descumprir cláusulas do MTA (BONE, 2020), o que os brasileiros responderam, de maneira incisiva, que não procedia e, na verdade, eram acusações falsas para que não tivessem que cumprir seus compromissos de US$ 4,2 bilhões com a Embraer, ou mesmo a multa sobre a rescisão (EMBRAER, 2020).

 

A conjuntura atual do mercado aeronáutico, com a parceria consolidada entre Airbus e Bombardier para a produção dos C-Series, hoje A220, em território estadunidense, exige da Embraer e da Boeing novas soluções no médio e longo prazo. No curto, no contexto da pandemia do COVID-19, todas as empresas devem apertar os cintos e aguentar o impacto do pouso forçado.

 

Para a Boeing, para quem o negócio seria ótimo, o cenário não é o mais favorável: imersa em uma crise sem precedentes na sua história (GELLES; KITROEFF, 2019), com um projeto proibido de voar nos principais espaços aéreos do mundo, o B737 MAX, além de atrasos na entrega do B777X e problemas de desempenho no KC-46A da Força Aérea americana, o futuro para a maior exportadora de manufaturados (RYSSDAL; HOLLENHORST, 2019) da maior economia do mundo não é promissor. Assim como foi feito em outras crises, a ação do Estado será primordial para a recuperação da empresa, que já sinalizou a necessidade de socorro da ordem de US$60 bi para os cofres públicos e que não poderiam ser utilizados para a aquisição, caso aprovados (TANGEL; CAMERON, 2020).

 

Mas e agora, Embraer? Quais são os próximos passos possíveis para que a empresa se mantenha na liderança em um contexto de mudanças significativas no setor? A resposta não é fácil, mas a história da empresa mostra que sua maior riqueza é a inteligência de mercado, o que será mais necessário do que nunca. Explico.

 

Para ser breve, cito dois exemplos emblemáticos da história da empresa, para depois retornar à necessidade da empresa se reinventar após a quebra do MTA. O primeiro nos remete à criação da então Empresa Brasileira de Aeronáutica[2], no final de 1969[3]. O avião que justificaria a criação da empresa, o Bandeirante, originalmente desenvolvido no interior do hoje Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), foi resultado de uma observação muito inteligente do líder da equipe que criou a empresa, Ozires Silva. O então Major aviador e engenheiro aeronáutico percebeu que não havia alternativa para voos regionais, para pousos em pistas mal preparadas, e que essa lacuna precisava ser preenchida, o que seria possível sem concorrer com as gigantes fabricantes da aeronave da época que já dominavam o mercado – a título de exemplo, o Boeing 707, aeronave a jato intercontinental, havia voado 10 anos antes do primeiro voo do Bandeirante, aeronave turboélice com alcance regional.

 

Dessa forma, a viabilidade do Bandeirante deu-se, em grande medida, pela carência de opções no mercado para o nicho que ele pretendia atender, além das encomendas públicas e o financiamento do Estado, que também assumiu os riscos de criar a empresa como uma estatal em 1969, condição que permaneceu até 1994. O primeiro avião da empresa foi um sucesso comercial, com 900 unidades vendidas no Brasil e no exterior, fruto da inteligência de mercado da empresa e da qualidade do produto.

 

O segundo exemplo é o da recuperação da empresa após a maior crise de sua história, acumulando uma dívida da ordem de US$ 1 bilhão de dólares em 1994 (BERNARDES, 2000, p. 256). O projeto que seria o responsável pela recuperação da empresa, o ERJ-145, foi inovador: a primeira aeronave comercial da empresa a jato, contava com um novo modelo de parceria para o seu financiamento – as parcerias de risco, que seriam imitadas pelas gigantes Boeing e Airbus só em 2008, após a Grande Crise Financeira – e buscou novamente preencher uma lacuna do mercado, o de aeronaves regionais a jato, com baixo custo e alta confiabilidade, o padrão usual da Embraer.

 

Mais uma vez, a Embraer acertou em cheio com sua inteligência de mercado e, é claro, com a qualidade já comprovada dos seus produtos. Após seus prejuízos do início da década, do lançamento do ERJ-145, em 1996, até 2002, quando seria sentido o impacto do 11 de setembro no mercado de fabricação de aeronaves, os resultados da empresa decolaram: após um processo de recuperação, o lucro líquido saiu do vermelho em 1998 e bateu R$ 1,17 bilhão[4] em 2002 (EMBRAER, 2003, p. 7).

 

E o que isso tem a ver com a rescisão do MTA? O primeiro ponto é mais evidente, embora exija um grande esforço dos envolvidos: a empresa, por sua natureza, tem capacidade de inovação e recuperação singulares, como os exemplos de sua história comprovam. O segundo é por causa do atual cenário mundial dos fabricantes de aeronaves, que precisarão se reorganizar para se recuperar da crise gerada pelo COVID-19 e do novo contexto em que a Airbus e Bombardier se associaram, entrando na arena de atuação e liderança da Embraer.

 

É sobre esse segundo ponto que precisamos nos debruçar para analisar as opções de parceria que a Embraer possui. Inicialmente consideremos que uma nova parceria é necessária, tendo em vista a entrada da Airbus no segmento de aviação comercial de até 150 assentos. Assim, devemos analisar algumas possibilidades reais de parceria e, ainda, os ativos estratégicos da Embraer.

 

Como já noticiado na imprensa e defendido pelo vice-presidente do Brasil, Gen. Hamilton Mourão (BOADLE, 2020), uma das possibilidades reais de parceria é com os chineses, que avançam neste mercado a partir dos esforços do governo em desenvolver também a aviação comercial – o governo chinês criou uma empresa estatal para isso, em 2008, a Commercial Aircraft Corporation of China (COMAC).

 

Os chineses vêm buscando aumentar sua participação no mercado de fabricação de aeronaves comerciais, considerando o setor estratégico para a economia nacional, sobretudo considerando que se trata de um setor de capital e tecnologia intensivos, além de uma força de trabalho altamente qualificada.

 

Além dos chineses, há possibilidades nos Estados Unidos que ainda não foram comentadas pela mídia especializada, como uma possível parceria com a Textron Aviation, que detém a Beechcraft, Cessna e Hawker. Muito embora sejam especializados na aviação executiva, trata-se de uma empresa com receita anual próxima à da Embraer e cuja parceria poderia ser igualmente surpreendente para o mercado, ainda que o poder de impacto na competição das gigantes Boeing e Airbus possa ser pequeno.

 

Nesta análise, também é importante considerarmos os principais ativos da Embraer, sobretudo relacionado aos seus principais produtos nos três principais segmentos de aviação, o comercial, executivo e de defesa. Diferentemente da Boeing, a Embraer está em ascensão, com produtos novos em todos os segmentos, o que desenha um horizonte favorável para a Embraer em situações normais, isto é, considerando a recuperação do setor após a pandemia do COVID-19, cuja tendência é de aumento de voos regionais, nicho da Embraer, e redução de voos intercontinentais, nicho da Boeing e Airbus sem Bombardier.

 

O futuro está ainda mais incerto para as fabricantes de aeronaves. Bastasse a pandemia, o setor sofreria os impactos da redução significativa na demanda por voos em todo o mundo, como também ocorreu em 2001 e 2008, com a diferença de ainda não sabermos se tudo voltará como era antes.

 

Por fim, caberá a Embraer retomar sua tão primordial inteligência de mercado, que já a fez sobreviver e superar obstáculos tão difíceis como o de produzir aviões de alta tecnologia em um país da semi-periferia do Sistema Internacional.  Seja qual opção a empresa tomar, esperamos que os principais beneficiários sejam os brasileiros.

 

 

Referências

 

 

BERNARDES, R. EMBRAER: elos entre estado e mercado. São Paulo: Hucitec, Fapesp. 2000

 

BOADLE, A. Embraer deveria considerar China como parceira, diz Mourão. Economia UOL. Disponível em < https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/04/27/embraer-deveria-considerar-china-como-parceira-diz-mourao.htm>, acesso em 27/04/2020

 

BONE, A. Boeing Terminates Agreement to Establish Joint Ventures with Embraer. Boeing Releases. 2020. Disponível em < https://boeing.mediaroom.com/2020-04-25-Boeing-Terminates-Agreement-to-Establish-Joint-Ventures-with-Embraer> acesso em 26/04/2020

EMBRAER. Embraer afirma que Boeing rescindiu indevidamente o Acordo Global da Operação (MTA). Embraer Notícias 2020. Disponível em < https://embraer.com/br/pt/noticias?slug=1206709-embraer-afirma-que-boeing-rescindiu-indevidamente-o-acordo-global-da-operacao-mta> acesso em 26/04/2020

 

________. Relatório Anual. 2003. Disponível em < https://ri.embraer.com.br/show.aspx?idCanal=FQxR65+1OmnFsUzhIziJFQ== > acesso em 27/04/20.

 

GELLES, D., KITROEFF, N. Boeing to temporarily shut down 737 max production. The New York Times. 2019. Disponível em < https://www.nytimes.com/2019/12/16/business/boeing-737-max.html?auth=login-email&login=email>, acesso em 26/04/2020.

 

RYSSDAL, K, HOLLENHORST, M. The CEO of America’s biggest exporter on manufacturing in America, doing business in China and President Trump. Market Place. 2019. Disponível em < https://www.marketplace.org/2019/02/11/ceo-americas-biggest-exporter-manufacturing-america-doing-business/>, acesso em 27/04/2020

 

TANGEL, A, CAMERON, D. Boeing asks for $60 billion in aid for U.S. Aerospace Industry. The Wall Street Journal. 2020. Disponível em < https://www.wsj.com/articles/boeing-asks-for-60-billion-in-aid-for-u-s-aerospace-industry-11584489179

 

 

[1] Graduado pela Academia da Força Aérea, é especialista e mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e trabalha com temas relacionados à Indústria Aeronáutica.

[2] Desde 2010, apenas EMBRAER S.A.

[3] Criada por meio do DECRETO-LEI Nº 770, DE 19 DE AGOSTO DE 1969

[4] Nota-se que, em 2002, houve a maior alta do dólar desde a criação do Plano Real até então, o que impactou diretamente os resultados da empresa publicados em reais.