Por Lucas Serra.

 

No último mês, três países da África Ocidental se destacaram pelos episódios de conflitos violentos internos, contribuindo para a instabilidade da região. A Costa do Marfim e a Guiné compartilharam cenários muito semelhantes de violência eleitoral, tendo como principal causa a disputa pelo controverso terceiro mandato dos presidentes Alassane Ouattara e Alpha Condé, respectivamente. Paralelamente, na Nigéria, protestos liderados por jovens contra uma unidade especial de polícia tomaram as ruas do país e foram impulsionados por meio de redes sociais, dando publicidade aos casos de violência estatal e sensibilizando o mundo quanto à repressão na maior economia da África. Estes cenários reforçam o quadro de instabilidade da África Ocidental no que se refere ao crédito das instituições estatais e condição da democracia, havendo potencial para o reavivamento de tensões políticas e étnicas – especificamente nos casos de Costa do Marfim e Guiné – e de sobreposição com outras situações de insegurança, a exemplo do terrorismo e do crime organizado.

 

Corridas eleitorais controversas

Costa do Marfim e Guiné viveram momentos semelhantes durante a corrida presidencial deste ano, com os presidentes Alassane Ouattara e Alpha Condé concorrendo a um terceiro mandato controverso. No caso da Costa do Marfim, a decisão do presidente de se candidatar pela terceira vez – ele foi eleito em 2010 e reeleito em 2015 – no dia 31 de outubro se deu após a morte do seu então sucessor, Amadou Gon Coulibaly, em julho deste ano. Com base na constituição adotada em 2016 e com aval do Conselho Constitucional do país, o governo entende que o limite imposto de dois mandatos presidenciais não se configura um obstáculo à atual candidatura de Ouattara, mas pelo contrário, tem potencial de permiti-lo governar a Costa do Marfim por dois mandatos adicionais[1]. Já na Guiné, a reforma constitucional em março e uma decisão do Conselho Constitucional em setembro permitiram ao presidente Alpha Condé – o qual curiosamente foi eleito e reeleito nos mesmos anos que Ouattara – concorrer no dia 18 de outubro[2]. Ouattara e Condé foram reeleitos com, respectivamente, 94% e 59% dos votos.

 

Os partidos concorrentes, por sua vez, consideram inconstitucionais as candidaturas dos presidentes e se configuram como as principais forças de confronto à Condé e Ouattara. Na Guiné, o principal opositor é Cellou Dalein Diallo, derrotado por Condé nas últimas duas eleições. Apesar de observadores internacionais confirmarem a transparência do pleito deste ano[3], Diallo alega a ocorrência de fraude e se declarou vitorioso um dia após a votação, recebendo 33,5% dos votos oficiais. Em represália, o governo guineense estabeleceu um bloqueio policial no entorno da residência do opositor, que foi retirado após pressão da União Africana e da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental[4].  

 

Na Costa do Marfim, os partidos de oposição assinalaram como parcial a ação do Conselho Constitucional e da Comissão Eleitoral Independente, esta última que rejeitou 40 dos 44 candidatos que pleiteavam à corrida eleitoral[5]. Os candidatos Pascal Affi N’Guessan e Henri Konan Bédié – os quais receberam 1% e 2% de votos na contagem oficial – e seus partidos convocaram um boicote nacional às eleições e, após os resultados, sugeriram a criação de um “Conselho Nacional de Transição” para retirar Ouattara do poder. A reação do governo da Costa do Marfim foi semelhante à da Guiné: considerando tal atitude um “ato de insurreição”, decretou prisão domiciliar para os principais opositores do presidente[6].

 

Além das figuras políticas, a violência nos dois países recaiu também sobre a população civil e se intensificou ao longo dos meses que precederam as eleições. A população guineense se levantou contra a candidatura de Condé pela primeira vez no ano passado, quando se aventou a possibilidade de o presidente concorrer a um terceiro mandato, enquanto os protestos contra Outtara iniciaram em agosto, após ser confirmada a substituição de Coulibaly. O uso de gás de fumaça e munição real pela polícia e exército contra manifestantes foi recorrente durante todo esse período, e é difícil contabilizar o número de mortos, feridos e presos. Na Guiné, a Anistia Internacional contabilizou ao menos 50 mortes desde os protestos iniciais contra Condé até julho deste ano[7], e a BBC noticiou que pelo menos 30 pessoas foram mortas desde a votação até o dia 24 de outubro[8]. Sobre a Costa do Marfim, a Deutsche Welle noticiou a morte de quatro pessoas no dia da eleição, com a oposição alegando que esse número foi de ao menos doze[9].

 

O movimento End SARS

No dia 7 de outubro, uma série de protestos contra o Special Anti-Robbery Squad (SARS) eclodiram com grande intensidade por cerca de duas semanas na Nigéria. Os manifestantes alegavam que o SARS, uma unidade policial especial do país, era responsável por constantemente agir de forma abusiva, com métodos de extorsão, tortura e assassinato, e exigia-se a extinção da força e investigação contra os perpetradores das violações. As demonstrações dos nigerianos em mais de 30 cidades, que em sua maior parte foram lideradas por uma população jovem, tomaram também as redes sociais com a hashtag #EndSARS e alcançaram diversas partes do mundo, sendo inclusive difundida pela mídia internacional e celebridades[10]. Os protestos, por sua vez, foram fortemente reprimidos pelas forças estatais. O presidente Muhammadu Buhari afirmou que 69 pessoas morreram até o dia 23 de outubro, sendo 51 civis, 11 policiais e 7 soldados[11].

 

As manifestações continuaram apesar da extinção do SARS em 11 de outubro, uma vez que não houve qualquer tipo de julgamento ou reparação frente as violações perpetradas pela unidade. Nesse sentido, as reivindicações tomaram uma proporção maior, sendo exigida uma reforma mais ampla de toda a estrutura de segurança do país[12], conhecido pela brutalidade da polícia e do exército contra os cidadãos. Os protestos foram fortemente reprimidos pelas forças estatais, havendo também manifestações violentas contrárias ao movimento End SARS. O presidente Muhammadu Buhari afirmou que 69 pessoas morreram até o dia 23 de outubro, sendo 51 civis, 11 policiais e 7 soldados[13]. O movimento nas redes sociais fomentou, ainda, a difusão de uma série de notícias falsas com relação aos protestos, tanto por parte de apoiadores do governo quanto por parte de quem apoiava as manifestações[14].

 

A instabilidade na África Ocidental

Na Costa do Marfim e na Guiné, a população teme que violência eleitoral tome proporções de um conflito étnico mais abrangente, o qual traria ainda mais instabilidade para região por conta da violência, deslocados internos e refugiados nos países vizinhos. Na Guiné, enquanto Condé é apoiado pelos grupos Malinke e Soussou, Diallo pertence aos Fulani que, apesar de serem a maioria no país, alegam sofrer discriminação desde a época do ex-presidente Sékou Touré[15]. Em paralelo, o temor de violência étnica é ainda mais evidente na Costa do Marfim, onde a memória das guerras civis de 2002-2007 e 2010-2011 ainda é muito recente. O apelo de Guillaume Soro, ex-aliado de Ouattara, às forças armadas em 4 de novembro para barrar a permanência do presidente eleito no poder[16] levantou questões sobre a lealdade das forças de segurança do país, forçando Ouattara a restabelecer a confiança com Bedié em um encontro no dia 11 de novembro[17].

 

Outro potencial catalisador da instabilidade na África Ocidental é o impacto de tais manifestações sobre o combate à grupos extremistas, sobretudo na Costa do Marfim, que vê as incidências de ataques cada vez mais próximos das regiões costeiras[18], e na Nigéria, tendo em vista a permanente ameaça do Boko Haram e do Estado Islâmico da África Ocidental no nordeste do país. A permanência de Ouattara como presidente da Costa do Marfim deve significar a continuidade das políticas ofensivas que o país tem adotado para evitar a penetração de grupos terroristas, a exemplo de participações em esforços regionais com Burkina Faso e com a francesa Operação Barkhane, além do estabelecimento de uma zona militarizada ao norte do país[19]. Com relação à Nigéria, apesar das manifestações não abordarem de forma primordial a questão do terrorismo – elas ocorreram, em sua maior parte, no centro-sul do país[20] –, as reivindicações de reformas no setor de segurança impactam diretamente no combate aos grupos na bacia do Lago Chade, uma vez que os problemas que afligem as forças policiais no país são os mesmos presentes nas forças contraterroristas, como a constante ocorrência de execuções extrajudiciais[21].

 

 

Referências: 

[1] https://www.theafricareport.com/34674/cote-divoire-ouattaras-bid-for-3rd-term-opens-up-a-can-of-worms/

[2] https://www.reuters.com/article/us-guinea-politics-idUSKBN2603G6

[3] https://www.france24.com/en/africa/20201021-african-monitors-say-guinea-election-conducted-properly-opposition-decries-fraud

[4] https://www.rfi.fr/en/africa/20201030-end-of-house-arrest-for-guinea-opposition-leader-after-post-election-violence

[5] https://issafrica.org/iss-today/cote-divoire-should-learn-lessons-from-past-election-crises

[6] https://www.rfi.fr/fr/afrique/20201104-c%C3%B4te-d-ivoire-le-rhdp-l-opposition-a-commis-actes-insurrectionnels

[7] https://www.amnesty.org/en/latest/news/2020/10/guinee-au-moins-personnes-tues-en-toute-impunite-dans-des-manifestations/

[8] https://www.bbc.com/news/world-africa-54657359

[9] https://www.dw.com/en/ivory-coast-election-violence-leaves-a-dozen-dead/a-55465966

[10] https://www.globalcitizen.org/en/content/ways-to-support-endsars-nigeria-around-the-world/

[11] https://www.bbc.com/news/world-africa-54666368

[12] https://www.crisisgroup.org/africa/west-africa/nigeria/nigerias-endsars-protest-de-escalate-tensions-start-deep-police-reform

[13] https://www.bbc.com/news/world-africa-54666368

[14] https://www.bbc.co.uk/programmes/p08wgzc5

[15] https://www.bbc.com/news/world-africa-54657359

[16] https://www.jeuneafrique.com/1069363/politique/cote-divoire-guillaume-soro-appelle-larmee-a-agir-face-a-alassane-ouattara/

[17] https://www.jeuneafrique.com/1072866/politique/cote-divoire-entre-ouattara-et-bedie-une-rencontre-pour-retablir-la-confiance/

[18] https://issafrica.org/iss-today/hard-counter-terrorism-lessons-from-the-sahel-for-west-africas-coastal-states

[19] https://www.aljazeera.com/news/2020/07/14/ivory-coast-creates-northern-military-zone-after-deadly-attack/

[20] https://africacenter.org/spotlight/endsars-demands-nigerian-police-reform/

[21] https://issafrica.org/iss-today/nigerias-endsars-protests-also-concern-counter-terrorism